22.03.2022

Tratamento tributário das perdas contabilizadas no patrimônio líquido

Marcos Vinicius Neder

Telírio Pinto Saraiva

16.1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o legislador brasileiro promoveu uma série de alterações societárias visando tornar mais realista a posição patrimonial e financeira das empresas e facilitar as avaliações e tomadas de decisões dos investidores. Sob a perspectiva do direito tributário, porém, há necessidade de adequação das bases de tributação à nova realidade societária, podendo acarretar diferentes percepções sobre os mesmos fenômenos.

Neste capítulo, trataremos da situação excepcional em que a empresa contabiliza perdas diretamente no seu patrimônio líquido. De fato, a legislação societária prescreve, via de regra, que as despesas incorridas devem ser reconhecidas no resultado,1 influenciando a determinação do lucro ou prejuízo contábil, mas também admite em situações muito específicas que alguns sacrifícios necessários à manutenção das atividades das empresas sejam lançados diretamente em conta do patrimônio líquido.

Em operações de redução do capital, por exemplo, eventual perda associada à avaliação dos ativos vertidos a valor justo pode ser reconhecida em contrapartida à conta do capital social, integrante do patrimônio líquido. Além disso, as perdas decorrentes da alienação de participação societária sem perda do controle da investida também são reconhecidas diretamente no patrimônio líquido, uma vez que a operação é interpretada pela contabilidade como modalidade de transação de capital (transação entre os sócios).

Assim, surgem dúvidas no tocante à possibilidade de dedutibilidade de despesas que não interferiram na formação do resultado contábil, apurado a partir da observância dos preceitos da lei comercial, cenário em que se verifica aparente incompatibilidade entre a legislação tributária e as orientações das normas societárias.

16.2 EXEMPLO HIPOTÉTICO: PERDA NA AVALIAÇÃO A VALOR JUSTO DA OPÇÃO DE CONVERSÃO DE DEBÊNTURES

Dada a diversidade de situações que podem exemplificar casos em que perdas são reconhecidas no patrimônio líquido, optamos por trilhar o presente estudo a partir de um caso hipotético, referente à conversão em capital de uma dívida avaliada a valor justo. Tal cenário desafia a interpretação das normas tributárias em face da complexa metodologia de avaliação de passivos a valor justo, hoje largamente empregada pelos profissionais de contabilidade, mas cujas implicações fiscais ainda são controversas.

Consideremos que a empresa Devedora S.A. emite debêntures para captação de recursos, dívida que é adquirida pela empresa Credora S.A. Segundo a escritura de emissão da dívida, o debenturista: (i) fará jus ao recebimento de juros apenas no vencimento do passivo, (ii) poderá optar no vencimento pela conversão das debêntures em ações da Devedora S.A., em vez de receber o pagamento em dinheiro; e (iii) estará sujeito a um preço fixo por ação que deverá reger eventual emissão de ações da companhia, caso a opção de conversão seja exercida pela Credora S.A.

Pela observância dos padrões contábeis em vigor, a administração da Devedora S.A. entendeu estar diante de instrumento financeiro composto, representado pela opção de conversão das debêntures em ações, razão pela qual referida opção foi avaliada e contabilizada pela companhia pelo seu valor justo, em aplicação dos mandamentos previstos pelo Pronunciamento Técnico Contábil no 39 – Instrumentos Financeiros: Apresentação (CPC 39):

32. […] o emissor de título conversível em ações ordinárias deve determinar primeiro o valor contábil do componente do passivo, mensurando o valor justo de passivo similar (incluindo quaisquer características embutidas de derivativo que não seja de patrimônio líquido) que não tenha um componente de patrimônio líquido associado. O valor contábil do instrumento patrimonial representado pela opção de conversão do instrumento em ações ordinárias deve ser, então, determinado pela dedução do valor justo do passivo financeiro do valor justo do instrumento financeiro composto como um todo. (grifos nossos)

Em função da avaliação da opção a valor justo, o preço da ação fixado pela escritura de emissão de debêntures é comparado ao valor de mercado das ações da Devedora S.A. Grosso modo,4 se o valor justo das ações for superior ao preço fixado pela escritura, a diferença entre esses valores é contabilizada no resultado da companhia como uma despesa, pois é como se a empresa estivesse disposta a futuramente alienar suas ações a um valor menor, comparativamente ao que poderia obter no mercado. Ainda por essa equação, se o valor justo das ações for menor ao preço fixado para conversão, a entidade registra uma receita atrelada à mensuração da opção a valor justo.

Tal metodologia é realizada por toda a curva do contrato das debêntures, com o registro em resultado de despesas ou receitas, conforme o caso. Referidos ajustes de Avaliação a Valor Justo (AVJ) são, em um primeiro momento, neutralizados para fins fiscais, em obediência aos arts. 13 e 14 da Lei no 12.973/2014, cujos dispositivos serão à frente mais bem estudados.

Alcançado o prazo de vencimento das debêntures, a Credora S.A. decide exercer a opção de conversão da dívida em ações da Devedora S.A. Nesse caso, como a dívida será paga pela Devedora S.A. mediante a emissão de instrumentos patrimoniais (ações), contabilmente a companhia procede à baixa das debêntures, tendo como contrapartida seu patrimônio líquido.

Imaginemos que, nesse momento, o preço de conversão – fixado originalmente pela escritura de emissão das debêntures – era inferior ao valor justo das ações. Desse modo, a Devedora S.A., ao baixar contabilmente o passivo de debêntures avaliado a valor justo contra o seu patrimônio líquido, acaba por reconhecer também no patrimônio líquido a perda atrelada à mensuração da dívida a valor justo.

Com isso, cabe perquirir se tal perda, contabilizada diretamente no patrimônio líquido, seria considerada dedutível para fins fiscais na apuração do lucro real. Para tanto, importante examinar o que prescrevem as regras que disciplinam a tributação da AVJ previstas pela Lei no 12.973/2014.

16.3 REGIME DE NEUTRALIDADE DA AVALIAÇÃO A VALOR JUSTO

O Pronunciamento Técnico Contábil no 00 – Estrutura Conceitual para Relatório Financeiro (CPC 00) destaca que os documentos emitidos pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) dedicam-se a fornecer informações para que “investidores e outros participantes do mercado tomem decisões econômicas fundamentadas”, e ajudar os usuários dasdemonstrações financeiras “a identificar oportunidades e riscos”. Verifica-se, portanto, que as práticas contábeis hoje são voltadas à divulgação de dados úteis ao mercado, buscando traduzir a real situação econômica das empresas.

Muitas vezes, porém, tais informações, de inegável utilidade para investidores, credores etc., não devem ser entendidas como determinantes para a apuração do montante de tributos devidos à Fazenda Nacional, eis que podem não representar uma real aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda, ou uma perda patrimonial efetiva. As despesas e receitas relativas à AVJ de ativos e passivos enquadram-se nessa categoria.

Nos termos do Pronunciamento Técnico Contábil no 46 – Mensuração do Valor Justo (CPC 46), “valor justo é uma mensuração baseada em mercado e não uma mensuração específica da entidade”,6 acrescentando que o valor justo corresponde ao “preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração”.7

Por ser uma mensuração “baseada em mercado”, a AVJ reflete ganhos ou perdas apenas potenciais. Trata-se de avaliação orientada por um racional eminentemente prospectivo e hipotético: se determinado ativo ou passivo fosse negociado em mercado, em uma determinada data, entre agentes independentes, por valor, qual valor poderia ser alienado? Essa é essencialmente a pergunta que se busca solucionar pela AVJ, cuja resposta influencia diretamente a escrita comercial das empresas.

No entanto, a tributação da renda é condicionada a ganhos e perdas efetivos, atrelados a eventos consumados. A título de comparação, pode-se verificar que o legislador tributário teve o cuidado de estabelecer que atos ou negócios jurídicos sujeitos a condição suspensiva apenas serão considerados perfeitos e acabados quando implementada a condição.8 Se determinado contrato sujeito a condição suspensiva, ainda que assinado pelas partes, não deve interferir na apuração dos tributos, o mesmo deve valer para os efeitos da AVJ, que sequer espelham a realização de um ato jurídico concreto, mas pauta-se em exercício hipotético “baseado em mercado”.

Justamente por estarmos diante de fictícios ganhos ou perdas é que a Lei no 12.973/2014 estabeleceu disciplina de neutralidade tributária dos ganhos (art. 13) e perdas (art. 14) vinculados à AVJ de ativos e passivos, buscando respeitar os princípios norteadores da tributação sobre a renda. Especificamente em relação às perdas decorrentes da AVJ de passivos, o art. 14 condicionou a sua dedutibilidade: (i) à efetiva liquidação ou baixa do passivo, e (ii) ao controle dos efeitos da AVJ em subconta contábil.

A partir desse regime de neutralidade, que condiciona a dedução da perda à liquidação ou baixa do passivo, passaremos a estudar os seus efeitos em nosso exemplo hipotético, particularmente com relação à conversão em ações das debêntures emitidas pela empresa Devedora S.A.

16.4 CONVERSÃO DAS DEBÊNTURES EM AÇÕES COMO ESPÉCIE DE LIQUIDAÇÃO DO PASSIVO

No momento em que a opção de conversão das debêntures em capital foi exercida pela Credora S.A., o preço de conversão – fixado originalmente pela escritura de emissão das debêntures – era inferior ao valor justo das ações. Isso significa que a AVJ da opção de conversão, realizada em obediência ao CPC 39, acarretou reconhecimento de uma despesa financeira para a entidade emissora, Devedora S.A.

Antes do vencimento das debêntures, a referida perda foi inicialmente contabilizada no resultado da Devedora S.A. Por se tratar de uma despesa decorrente da avaliação contábil de passivo a valor justo, a companhia procedeu à adição da perda às apurações das bases de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), e passou a controlá-la em subconta contábil específica, em atendimento à Lei no 12.973/2014, art. 14, e à IN RFB no 1.700/2017, art. 104, § 2o.9

Depois, com a conversão das debêntures em ações, referido passivo – e, consequentemente, as perdas decorrentes da AVJ – foi baixado, tendo como contrapartida o patrimônio líquido da companhia. Nesse momento, obrigatoriamente nos defrontamos com a questão da dedutibilidade dos efeitos dessa AVJ na determinação do lucro real.

Conforme estudado, essencialmente o art. 14 da Lei no 12.973/2014 condiciona a dedutibilidade da “perda de AVJ” à verificação da liquidação ou baixa do respectivo passivo. Confira-se:

Art. 14. A perda decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo somente poderá ser computada na determinação do lucro real à medida que o ativo for realizado, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa, ou quando o passivo for liquidado ou baixado, e desde que a respectiva redução no valor do ativo ou aumento no valor do passivo seja evidenciada contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo. (grifos nossos)

É de se notar que tal dispositivo não exige que os efeitos da liquidação ou baixa do passivo sejam computados em resultado. A norma não faz distinção entre as situações em que a eliminação do passivo é refletida, tendo como contrapartida conta de resultado, ativo ou patrimônio líquido.

Ou seja, para a dedutibilidade do ajuste de AVJ atrelado a uma despesa, e que outrora foi adicionada ao lucro real e ao resultado ajustado da CSLL, é suficiente a verificação da ocorrência do evento de liquidação ou baixa do passivo.

Nessa linha, é possível concluir que o evento de conversão de debêntures em ações é espécie de liquidação do passivo, enquadrando-se na condição legal prevista pelo caput do art. 14 da Lei no 12.973/2014.

Encontra-se consolidado na jurisprudência administrativa o entendimento de que a entrega de instrumentos patrimoniais (e.g., ações) equivale à efetiva e legítima modalidade de pagamento. Nesse sentido, recorremos ao Acórdão 9101001.657, de 15/05/2013, expedido pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, que, ao examinar o custo de aquisição de investimento para fins de dedutibilidade de ágio, consignou que a subscrição de ações se equipara, para todos os efeitos, a espécie de aquisição:

ÁGIO. AMORTIZAÇÃO. SUBSCRIÇÃO DE AÇÕES.

A operação societária de subscrição de ações equipara-se a uma aquisição. A subscrição de ações é uma forma de aquisição e o tratamento do ágio apurado nessa circunstância é o previsto na legislação em vigor (arts. 7o e 8o da Lei no 9.532/1997).

Ora, se a subscrição direta de ações é meio legítimo de pagamento, a emissão de ações, mediante a conversão de debêntures, também o é. Sob a perspectiva do credor, o resultado é idêntico; a única diferença é que recursos do subscritor já foram antecipados à entidade – mediante a aquisição de debêntures –, sendo esses mesmos recursos a fonte para aquisição das novas ações emitidas. Em outras palavras: na subscrição direta, o investidor aporta caixa em troca de ações; na conversão de debêntures o investidor troca um direito de crédito (debêntures) por ações.

A Solução de Consulta Cosit no 3/2016 igualmente acolhe esse entendimento, ao registrar que “a aquisição acionária pode ser feita através de outras formas de integralização, como o oferecimento de bens ou ações, a assunção de passivos e emissão e entrega de instrumentos de capital ou o conjunto combinado de mais de um dos tipos de contraprestação”.

Ou seja, a quitação de debêntures devidas pela companhia a terceiros mediante a emissão de ações equivale à efetiva liquidação do passivo, enquadrando-se na condição legal imposta pela Lei no 12.973/2014, art. 14 (liquidação ou baixa do passivo), restando autorizada a exclusão da perda decorrente da avaliação a valor justo que foi em exercícios anteriores adicionada às apurações do IRPJ e da CSLL.

16.4.1 Solução da aparente incompatibilidade entre a Lei no 12.973/2014 e o CPC 39

A conclusão consignada na seção anterior parece endereçar uma incompatibilidade entre o art. 14 da Lei no 12.973/2014 e o CPC 39. Isso porque a norma tributária (art. 14) autoriza a dedutibilidade de uma despesa que não é como tal reconhecida pela norma contábil (CPC 39). Ocorre que esse conflito entre normas é, ao nosso ver, apenas aparente.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, no presente caso de estudo, para fins fiscais, as determinações da Lei no 12.973/2014 devem prevalecer em relação às orientações contábeis insculpidas no CPC 39, uma vez que essa última é norma de cunho meramente administrativo.

De fato, os documentos emitidos pelo CPC adquirem valor jurídico quando aprovados por entidades que gozam de competência delegada por lei para dispor sobre práticas contábeis. É o caso, por exemplo, do Conselho Federal de Contabilidade (CFC).10 No entanto, as normas expedidas por essas entidades equivalem a atos administrativos, portanto infralegais.

Ainda tendo o CFC como referência, trata-se de uma autarquia especial, dotada de personalidade jurídica de direito público.11 As sociedades em geral devem obediência ao CPC 39, pois referido pronunciamento foi internalizado pelo CFC por meio da Norma Brasileira de Contabilidade TG no 39 (R5) – Instrumentos Financeiros: Apresentação (NBC TG 39). No entanto, a NBC TG 39 jamais poderá sobrepor-se à regra tributária específica introduzida pela Lei no 12.973/2014.

Não custa lembrar que o sistema tributário encontra suas bases no princípio da legalidade,12 de modo que a aplicação do art. 14 da Lei no 12.973/2014 deve prevalecer independentemente de determinada perda ser, para fins estritamente contábeis, reconhecida de maneira diversa.

A legislação tributária conferiu disciplina específica para o tema, não tendo condicionado a dedutibilidade da perda ao seu trânsito pelo resultado da entidade. Vale reiterar: para fins fiscais, a dedução é autorizada pela liquidação ou baixa do respectivo ativo ou passivo, ou seja, a norma tributária disciplina de forma clara o tratamento a ser conferido na extinção da transação, independentemente do seu registro contábil.

Como direito de sobreposição, a legislação tributária aplica filtros próprios (GRECO, 2004, p. 133-134)13 sobre conceitos trazidos por outros ramos do direito (e.g., societário, civil etc.) (SCHOUERI; TERSI, 2011, p. 107-150; 126).14 Esse é o exato papel desempenhado pelo art. 14 da Lei no 12.973/2014, ao regular o tratamento fiscal a ser conferido às perdas decorrentes da contabilização de ativos e passivos a valor justo.

Duas recentes manifestações da Receita Federal contribuem para as conclusões apresentadas anteriormente. A primeira delas refere-se à Solução de Consulta Cosit no 198/2019. Nessa ocasião, o Fisco analisou a tributação do ganho de capital na alienação de participação societária escriturado diretamente em conta do patrimônio líquido por força das regras contábeis. A Receita Federal entendeu que, mesmo não transitando pelo resultado, esse ganho é tributável. Vejamos:

Solução de Consulta Cosit no 198/2019

GANHO DE CAPITAL NA ALIENAÇÃO DE INVESTIMENTOS. CONTABILIZAÇÃO NO PATRIMÔNIO LÍQUIDO. DETERMINAÇÃO DO LUCRO REAL. ADIÇÃO AO LUCRO LÍQUIDO.

O ganho de capital na alienação de bens do ativo não circulante classificados como investimentos, quando contabilizado no patrimônio líquido, será computado no lucro real mediante adição ao lucro líquido. […]

Fundamentos

[…] os resultados não incluídos na apuração do lucro líquido que, de acordo com a legislação tributária, devam ser computados na determinação do lucro real ou do resultado ajustado, devem ser adicionados ao lucro líquido do período de apuração, para determinação do lucro real ou do resultado ajustado […].

O Fisco adotou a interpretação de, para fins da tributação dos ganhos de capital, a norma tributária não fazer distinção em relação à contabilização desse ganho em resultado ou em conta do patrimônio líquido. De forma semelhante, a Lei também não faz distinção no tocante à exclusão da perda associada à AVJ decorrente da extinção de debêntures, ou de qualquer outro passivo ou ativo. Não traz regramento específico se a perda é refletida em resultado, ativo ou patrimônio líquido, importando, apenas, o evento de liquidação ou da baixa.

Em outra ocasião, a Receita Federal, por meio da Solução de Consulta Cosit no 415/2017, entendeu que os eventos de redução de capital deflagram a tributação de eventual ganho decorrente da avaliação de ativos a valor justo, ainda que a devolução do capital seja realizada pelo valor contábil do bem ou direito, vide transcrição da ementa da Solução:

Solução de Consulta Cosit no 415/2017

PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS. DEVOLUÇÃO DE CAPITAL EM BENS E DIREITOS AVALIADOS A VALOR JUSTO. ALIENAÇÃO. VALOR CONTÁBIL. POSSIBILIDADE. ADIÇÃO DO GANHO CONTROLADO POR SUBCONTA.

A pessoa jurídica pode efetivar a transferência de bens aos sócios por meio da devolução de participação no capital social (redução de capital) pelo valor contábil, não gerando, assim, ganho de capital. No entanto, o valor contábil inclui o ganho decorrente de avaliação a valor justo controlado por meio de subconta vinculada ao ativo, e, quando da realização deste, qual seja, transferência dos bens aos sócios, o aumento do valor do ativo, anteriormente excluído da determinação do lucro real e do resultado ajustado, deverá ser adicionado à apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.

O Fisco interpretou que, atualmente, o conceito de valor contábil abarca o eventual ganho controlado em subconta decorrente da avaliação a valor justo. Nessa linha de argumentação, considerando ser a redução de capital modalidade de realização do ativo, o Fisco concluiu que, mesmo quando realizada pelo valor contábil, a redução de capital implica tributação do eventual ganho controlado em subconta contábil relacionado com a mensuração do ativo pelo seu valor justo.

Se, nos termos da referida Solução de Consulta, o ganho associado à AVJ é tributável nos eventos de redução de capital, logo, eventual perda seria dedutível. Nesse ponto, é relevante observar que a redução de capital é também contabilizada diretamente no patrimônio líquido, eis que a baixa do ativo tem como contrapartida a conta de capital social.

A Solução de Consulta Cosit no 415/2017 ilustra manifestação expressa da Receita Federal no sentido de que a neutralização dos ajustes a valor justo deve ser observada, ainda que a operação seja escriturada no patrimônio líquido. Referida opinião pode ser empregada por analogia ao presente caso, em prol da exclusão da “perda de AVJ” no momento de liquidação das debêntures mediante a sua conversão em ações.

16.4.2 Analogia à dedutibilidade dos pagamentos baseados em ações

A situação tratada neste capítulo muito se assemelha aos pagamentos baseados em ações realizados a administradores, e cuja dedutibilidade dos efeitos da AVJ é autorizada pela Lei no 12.973/2014, ainda que a perda tenha sido contabilizada no patrimônio líquido e a obrigação liquidada mediante a entrega de instrumentos patrimoniais (e.g., ações). Confira-se:

Lei no 12.973/2014, art. 33. O valor da remuneração dos serviços prestados por empregados ou similares, efetuada por meio de acordo com pagamento baseado em ações, deve ser adicionado ao lucro líquido para fins de apuração do lucro real no período de apuração em que o custo ou a despesa forem apropriados.

§ 1o A remuneração de que trata o caput será dedutível somente depois do pagamento, quando liquidados em caixa ou outro ativo, ou depois da transferência da propriedade definitiva das ações ou opções, quando liquidados com instrumentos patrimoniais.

§ 2o Para efeito do disposto no § 1o, o valor a ser excluído será:

I – o efetivamente pago, quando a liquidação baseada em ação for efetuada em caixa ou outro ativo financeiro; ou

II – o reconhecido no patrimônio líquido nos termos da legislação comercial, quando a liquidação for efetuada em instrumentos patrimoniais. (grifos nossos)

Tal modalidade de pagamento é usualmente oferecida pelas empresas aos seus funcionários, no âmbito de programas de Incentivos de Longo Prazo (ILP), em que são outorgadas opções de compra de ações (chamadas stock options ou SOP), ou concedidas unidades de ações restritas (denominadas restricted stock units ou RSU). Em linhas gerais, para a fruição dos contratos de ILP, os empregados elegíveis (usualmente funcionários da alta administração) devem alcançar as metas de desempenho e tempo de serviço determinadas pelo programa.

Contabilmente, as operações de SOP e RSU são mensuradas a valor justo, em conformidade com o Pronunciamento Técnico CPC 10 – Pagamento Baseado em Ações (CPC 10). Pela aplicação da norma contábil, o registro dos contratos é realizado em conta do patrimônio líquido, tendo como contrapartida o reconhecimento de uma despesa no resultado.

Em apertada síntese, o CPC 10 impõe que as transações com pagamentos baseados em ações sejam mensuradas a valor justo pela entidade beneficiária dos serviços, sendo registradas à medida que o contrato é cumprido, em respeito ao princípio da competência contábil (e.g., à medida que os serviços sejam prestados).

Tendo como referência um contrato “padrão” de ILP, os serviços prestados pelos integrantes da entidade são o objeto da mensuração a valor justo, o que irá corresponder à avaliação do valor justo das próprias opções outorgadas ou das unidades de ações conferidas. Nesses casos, os programas de incentivo são contabilizados diretamente no patrimônio líquido da sociedade, considerando que a sua liquidação será efetivada pela entrega de instrumentos patrimoniais (ações).

Por se tratar da contraprestação à fruição do fornecimento de serviços, independentemente da forma como a relação será quitada, via de regra, a mensuração do valor justo terá como correspondência uma despesa, afetando o resultado da companhia.15 Utilizando linguagem tipicamente contábil, a escrituração dos contratos será representada por um lançamento devedor no resultado, diminuindo-o, em contrapartida a um lançamento credor no patrimônio líquido (para os negócios liquidados pela entrega de instrumentos patrimoniais) ou no passivo (quando os pagamentos são realizados em caixa).

Nos pagamentos baseados em ações, a despesa computada pela avaliação a valor justo do contrato equivale ao reconhecimento na contabilidade do “custo de oportunidade” suportado pela companhia. Esse aspecto igualmente encontra-se presente no exemplo estudado, em que debêntures são liquidadas mediante a entrega de ações pela empresa Devedora S.A.

Esse conceito pode ser observado em relação aos programas de SOP. Quando as opções outorgadas são exercidas pelos funcionários, usualmente as ações são adquiridas por um valor inferior ao que seria apurado em uma alienação no mercado. A diferença entre o que a companhia poderia obter no mercado e o que é efetivamente recebido pelo exercício das opções equivale ao custo de oportunidade, reconhecido na contabilidade como despesa. Racional parecido rege a avaliação a valor justo da opção de conversão de debêntures em ações, nos termos do CPC 39.

Conforme visto, o art. 33 da Lei no 12.973/2014 autoriza a dedutibilidade desse custo de oportunidade, mensurado pela avaliação a valor justo do contrato baseado em ações. Tal dedutibilidade é condicionada à efetiva liquidação das operações mediante a entrega de ações (§ 2o, II). Trata-se de disciplina semelhante à dispensada pelo art. 14 da mesma Lei às perdas decorrentes associadas à AVJ de ativos e passivos (dedutibilidade condicionada à liquidação ou baixa).

As disciplinas previstas pelos arts. 14 (AVJ) e 33 (pagamento baseado em ações) têm razão de ser. Antes da liquidação das transações, as despesas contabilizadas refletem uma estimativa do custo que ainda será incorrido. Nesse momento, a avaliação a valor justo dos contratos se assemelha a uma provisão contábil, não podendo ser, para fins fiscais, considerada um dispêndio efetivo, capaz de influenciar a apuração dos tributos. O regime imposto pela legislação tributária é necessário, pois visa a coesão do sistema, que, via de regra, não considera dedutíveis estimativas e provisões contábeis.

Fato é que o art. 33 expressamente regula a dedutibilidade de uma perda associada à avaliação de um contrato a valor justo, contabilizada em conta do patrimônio líquido e cuja liquidação ocorre mediante a entrega de ações. Todas essas características encontram-se presentes na operação em que a empresa Credora S.A. exerce a opção de conversão das debêntures emitidas pela Devedora S.A. em ações.

O teor do art. 33 reforça as conclusões apresentadas nas seções anteriores, extraídas da interpretação e aplicação do art. 14 da Lei no 12.973/2014, no sentido de que, independentemente do tratamento contábil conferido aos efeitos da AVJ, a dedutibilidade da perda deve ser resguardada, desde que respeitadas as condicionantes previstas pela legislação tributária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo cuida de tentar equacionar algumas inquietações que a perda patrimonial tem causado na comunidade jurídica, quando registradas diretamente no patrimônio da sociedade, portanto, sem transitar pelo resultado contábil.

A aplicação concomitante de regras de direito contábil e societário é usual para os que operam no direito tributário, sobretudo quando lidam com tributos que incidem sobre o lucro das pessoas jurídicas. A qualificação de um fato contábil como despesa, por exemplo, expressa um procedimento de interpretação desse evento à luz de normas tributárias.

No caso de perdas associadas à avaliação de dívidas a valor justo, por exemplo, o art. 14 da Lei no 12.973/2014 impõe a verificação da liquidação ou baixa do respectivo passivo como condição para dedutibilidade da “perda de AVJ”, sem fazer distinção entre as situações em que a eliminação do passivo é refletida tendo como contrapartida conta de resultado, ativo ou patrimônio líquido.

Isto é, o regime dispensado pela Lei no 12.973/2014 à avaliação de ativos e passivos a valor justo evidencia situação em que a legislação tributária oferece ferramentas para a dedutibilidade de perdas escrituradas no patrimônio líquido.

Tal conteúdo específico da legislação tributária deve prevalecer em detrimento das normas contábeis que disciplinam a contabilização da perda diretamente no patrimônio líquido. No caso em estudo, por exemplo, a norma fiscal – Lei no 12.973/2014 – prevalece sobre a orientação contábil trazida pelo CPC 39, norma infralegal.

A despeito de o lucro líquido do exercício ser o ponto de partida para a determinação do denominado “lucro real”, as perdas contabilizadas fora do resultado contábil não devem ser automaticamente consideradas indedutíveis, sendo imprescindível um exame apurado do fato à luz da legislação tributária para se concluir que determinado evento se enquadra como acréscimo/decréscimo para fins de tributação.

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